Ex-cortador de cana comemora aprovação no curso de Medicina da UPE
Jonas Lopes da Silva venceu o sofrimento, o sol escaldante e a pobreza ao ser aprovado no Vestibular 2010 da Universidade de Pernambuco
Da Redação do pe360graus.com
A história de Jonas Lopes da Silva poderia ser contada nas marcas que carrega nas mãos, com as cicatrizes deixadas pelo trabalho nos canaviais. Mas ele decidiu acreditar num sonho que se concretizou este ano ao ser aprovado no curso de Medicina no vestibular da Universidade de Pernambuco.
O passado deste ex-cortador de cana ainda está bem próximo da porta de casa, de onde é possível enxergar os canaviais da Zona da Mata de Pernambuco, onde Jonas trabalhou dos 7 aos 15 anos de idade. “Esse cenário é um cenário onde cortei cana quando era criança e saia da aula”, recorda.
Do tempo de sacrifícios, o jovem de 24 anos, guarda o facão, algumas cicatrizes e muitas lembranças. “Sofrimento, sol escaldante e ter que ver as pessoas sofrendo.”
Jonas é filho de um pedreiro e de uma cortadora de cana (foto 4). Eles não terminaram o ensino primário e comemoram a maior conquista da família: Jonas é o primeiro a entrar na universidade. “Eu via minha realidade logo cedo, aí foi que eu disse: eu não vou trabalhar aqui, eu não vou sofrer. Eu quero outra coisa. E aí quando criança já sonhava muito.”
Os conselhos do pai, José Lopes da Silva, foram fundamentais para Jonas continuasse os estudos. “Queria que ele seguisse um mundo diferente do meu, com uma vida de estudo porque o campo não daria certo para ele. E o sonho de realmente ver o meu filho estudando medicina, isso aí é uma alegria que não tem nem como me expressar.”
A mãe, Edileusa Lopes, acompanhou todo o esforço de Jonas para superar as lacunas do ensino público. Dos sete filhos, três não estudaram. O mais velho é pedreiro em São Paulo. Jonas é o orgulho da família. “Eu não sei nem dizer a felicidade que eu estou. Estou tão feliz que dá vontade de correr pelos quatro cantos gritando.”
Para chegar até lá, não foi fácil. Jonas teve que trabalhar para juntar dinheiro e pagar os estudos. Durante quatro anos ele tentou o vestibular. Morou num alojamento para estudantes, deixou de lado a diversão e chegou a passar fome. “Eu ia para casa dos meus parentes, da minha irmã e da minha tia, para almoçar.”
Agora, o ex-canavieiro quer ser cardiologista porque considera a profissão mais nobre que se pode ter. Para quem saiu dos canaviais, ele sonha grande. Quer ser pesquisador e fazer pós-doutorado em Harvard, nos Estados Unidos.
Com os pés no presente, ele foi conhecer a Universidade de Pernambuco, onde vai estudar em 2010. Jonas tem como filosofia um lema de um programa que procura humanizar a medicina, levando alento aos pacientes.
Um dos principais defensores desta alternativa terapêutica é o médico Wilson Freire (foto 5). O que Jonas não sabia é que este doutor em medicina também tem um passado parecido com o dele. “Eu tive uma vida muito parecida com a sua. Você veio da Zona da Mata e eu vim do Sertão. Para estudar, fui morar na casa dos estudantes”, relembra o médico.
Infância pobre, trabalho precoce, superação. Dois personagens ligados pela medicina. Quem recebe da vida uma oportunidade como esta, sabe a melhor maneira de aproveitá-la. “Nos que viemos de situação difícil, temos por obrigação lutar para que essas coisas mudem e que outras pessoas não tenham que passar pelo que nós passamos”, finaliza Freire.
Ana Braga // anabraga.pe@dabr.com.br
Foto: Fotos: Ricardo Fernandes/DP/D.A Press |
Além de Jonas, apenas o caçula da família, Renato, de 20, completou o ensino médio. Outros quatro largaram os estudos para trabalhar. "Minha mãe foi acabada pela cana de açúcar. Foi massacrada pelo destino. Minha avó até hoje se arrepende de ter tirado o sonho dela, de ter tirado ela da escola", conta Jonas. "Então, quando meu pai me disse que se eu não estudasse, eu iria cortar cana, fiquei danado. Daí para frente disparei. Fui aluno laureado no 1º, 2º e 3º ano", orgulha-se o rapaz, que salvou na memória afetiva, da pracinha de Joaquim Nabuco, os nomes dos professores da época. "Tive Alex, de matemática, e três professoras que foram mães. Dona Eulália, de história, dona Risonete, de português, e Elian, de geografia", recorda.
Foram quatro anos de tentativas, até a aprovação na UPE. Na primeira, em 2006, ainda morando em Joaquim Nabuco, levou ponto de corte. "Senti todas as carências do ensino público aí. Pensei em pedir emprego na prefeitura", afirma. Em 2007, recuperou o "prejuízo". Passou em um concurso do IBGE para ser agente do censo. Realizou o trabalho, mudou-se para Jaboatão (onde mora a irmã mais velha, Márcia) e pagou um curso pré-vestibular com o dinheiro que guardou. "Eu escutava falar muito de vestibular no rádio. Aí, já sabendo que para a minha condição social passar em medicina era difícil, decidi investir nesse curso, em um colégio famoso da capital", recorda o jovem, criado no bairro de São Miguel, que ele chama de "Coque de Joaquim Nabuco". "As pessoas diziam que eu nunca ia passar porque era pobre". Ele não acreditava nisso, mesmo reprovado pela segunda vez, no vestibular de 2007. "Aprendi a lutar com a dor da minha mãe e com a sabedoria do meu pai. São dois filósofos, apesar da dureza. Sempre ouvi deles que eu deveria me dar bem com Deus e o diabo", reproduz.
Sentindo-se cada dia mais desafiado, Jonas procurou em 2008 um curso de matérias isoladas. "O nível de exigência do aluno era maior. Mas era o que eu precisava. Conheci o professor Vieira Filho, fiz teste para uma bolsa 100%, mas só consegui desconto. Eu pagava R$ 190, por cinco disciplinas, ainda com o que sobrou do IBGE", conta o rapaz, que nesse tempo mal se mantinha acordado nas aulas e nos ônibus (quatro por dia). "Sofri em silêncio", desabafa. Jonas ficou na lista de remanejamento, por 13 pontos. Bastaria queduas pessoas desistissem, o que não aconteceu.
Além de aprender biologia, física e química, Jonas teve que aprender a brincar. A exemplo de um dos seus "mestres", o poeta Fernando Pessoa, criou heterônimos. Personagens dele mesmo. Pequenas histórias autobiográficas. O mais conhecido é João, um menino que adora tirar fruta do pé. "Uma vez João me disse para eu não ficar triste. Falou que quando eu passasse, eu ia para casa, comer manga e chupar picolé", brinca Jonas. "Eu fui fazer as provas este ano de mãos dadas com Deus e João", ressalta. Outra coisa: Jonas nunca brinca sozinho. "Converso com os meus mestres, Franz Kafka, Josué de Castro, Machado de Assis, Mozart, Bach e João Cabral de Melo Neto", cita alguns.
Para encurtar os gastos com as passagens de ônibus, as despesas na casa da irmã e o cansaço, Jonas conseguiu uma vaga na Casa de Estudantes de Pernambuco, no mês de abril deste ano. "O acolhimento foi imediato", declara. "Além disso, fui atrás novamente de uma bolsa integral e consegui, através do professor Fernandinho e companhia", fala Jonas, agradecido como se falasse de "deuses". Era tudo ou nada este ano. Foi tudo. Jonas conseguiu a aprovação pelo sistema de cotas (que reserva 20% das vagas para alunos egressos da rede pública), com a pontuação 532,25. E foi também o começo. Jonas já faz planos para comprar os primeiros livros (Prometheus, Atlas de Anatomia e Harrison: Medicina Interna) com o dinheiro de um novo concurso do IBGE. Também já aprendeu no corredor da UPE que "a arte na medicina às vezes cura, de vez em quando alivia, mas sempre consola".
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